Cheia de 1985 – prof. Kamilo Karol
ENTRE A POEIRA E AS ÁGUAS
A cheia de 1985 na
cidade de Jaguaruana
Abaixo alguns trechos da monografia do pesquisador e professor Kamillo Karol Ribeiro e Silva que mostra um pouco do cenário da cheia de 1985.
O objetivo deste capítulo é desenvolver uma reflexão a respeito da dimensão que o fenômeno da cheia de 1985 alcançou em Jaguaruana, destacando os acontecimentos ocorridos no centro desta mesma urbe, tendo em vista que toda esta região específica foi atingida pelas consequências do acontecimento.
No século passado, como podemos observar no gráfico abaixo, registraram-se a decorrência de várias enchentes que são comumente lembradas, de modo geral, pela população da região do Baixo-Jaguaribe.
A cheia de 1924, por exemplo, foi lembrada pelo nosso entrevistado, o Sr. Jose Felipe da Silva como duas vezes maior que a de 1985. A cheia ocorrida em 1960, por sua vez, foi em boa mediada agravada pelo rompimento da barragem do açude Orós. A cheia de 1974, embora em proporções menores, se comparada com as anteriores, trouxe igualmente prejuízos para toda a região. A mais recente das cheias, a de 1985, permanece como herança mais forte na memória coletiva local.
Em 1985, entretanto, pode-se notar pela fala dos entrevistados e por fontes oficiais, especialmente as Atas da Câmara de Vereadores da cidade que as ações das políticas públicas estaduais e municipais foram intensificadas, sendo mobilizada uma significativa força para ajudar as populações mais carentes.
Antonio Avani de Almeida, 55 anos, foi entrevistado para esse trabalho em 13 de novembro de 2002, em Jaguaruana, no bairro alto, que fica na periferia da cidade. Avani é trabalhador rural e em 1985, como muitas vezes se refere, era agricultor doméstico, plantando no quintal da sua casa. No ano da entrevista era funcionário público municipal e exercia a função de vigia em uma escola. Suas memórias foram essenciais para a construção desta pesquisa.
Conforme afirmou, “sobrou mercadoria, na cheia de 85. A calamidade pública foi pelo volume d‟água, mas a fome, hoje a fome é muito maior. Tá muito mais triste que no período da cheia de 85.” (Antonio Avani Almeida, 13 nov. 2002)
A forma como o sr. Avani descreve o período chama atenção em diversos aspectos. Acredito que naquele momento quando a enchente causou uma ruptura na sua situação de trabalhador rural, a saída para seus problemas era justamente receber o que “os outros davam” para sanar, mesmo que temporariamente, seus problemas e os da sua família.
Noutra fala, Avani descreve a situação pela qual passavam os retirados, afirmando que “era tudo misturado”, mas que “todos tinham comida.”
A gente recebia uma fava preta, era uma delícia. Era uma fava preta trazida pelo governo. Ovos, era assim a granel. Só se falava nos ovos. Você já não ouviu falar? Por exemplo, a minha família na época eu tinha cinco filhos, todos pequenos, tinha só a menina mais velha quinze anos. Mas nois recebia, se fosse coisa que nós pudéssemos levar, eu mais meus filhos que eram pequenininhos, mas se levasse 3 de uma casa, 5 de uma casa, 6, 10... cada uma pessoa, não era uma distribuição para uma família, cada pessoa recebia. Tantos quilos de fava, tanto isso, tanto aquilo, tantos pacotes de massa, tantas bandejas de ovos. (Antonio Avani Almeida, entrevista citada).
Outro narrador da pesquisa foi o senhor José Felipe da Silva que foi entrevistado dia 10 de novembro de 2002, no distrito de Jurema, a 22 km do centro da cidade. Ele que sempre morou na região, teve papel de destaque durante a enchente de 1985, pois era vereador e exercia a função de presidente da Câmara na época.
Como comerciante bem sucedido no ramo da fruticultura irrigada, falou de suas “agruras” durante o período. Suas memórias foram importantes para entender e analisar as falas daqueles que na época constituíam o poder público. Zé Felipe faleceu em agosto de 2015.
Ao contrário de Avani que precisava das ajudas dadas durante a cheia, o então vereador, quando indagado sobre a situação da fome na zona rural, mais especificamente no distrito de Jurema, interior do município de Jaguaruana, falou do seu papel enquanto líder comunitário no combate às consequências da enchente.
A partir desta fala é que notamos que se fazia um programa de política pública diária, cujo objetivo era ficar em evidência o tempo todo.
[...] E então, trazia mercadoria e distribuía. Eu pelo menos distribui três vezes: a primeira vez foi ali no Raimundo Pedro; a segunda vez ali no Raimundo Catarino, dentro da canoa já! A terceira vez eu distribuí lá no sitio Ferreira. Já num lugar alto. Esta mercadoria eu fui buscar em duas canoas lá no Sargento, no encontro da pista, na entrada da jurema. Duas canoas. Neste dia eu quase morro de frio. Quando terminamos de botar a mercadoria dentro, bateu um pé d‟água viu... Ai nós se mandamos. Cheguei lá no Joaozito, de 5 pras 6 horas, chega tremia. Aí distribuía a mercadoria. (José Felipe da Silva. 10 nov. 2002).
1.2. Jaguaruana: Aguaceiros de 1984 e a Cheia de 1985
Em 1985, o inicio do ano pareceu à população do município de Jaguaruana ser bastante promissor. Toda a região da Chapada do Apodi e os sítios situados na Região de Lagoa Vermelha, Córrego do Machado, Formigueiro e Pacatanha, começaram a colher o algodão, filho das chuvas de 1984.4 A partir de relatos colhidos, percebemos que a previsão de um bom inverno para 1985 era amplamente divulgada na região.
[...]
A oscilação do nível das águas se dava em obediência ao índice pluviométrico e em conformidade com a capacidade de armazenamento de água por parte dos açudes Orós e Banabuiú, cujas águas alimentam o rio Jaguaribe.
Diferente de cidades como Limoeiro do Norte ou Russas que também foram afetados pelas enchentes, cidades como Jaguaruana, Itaiçaba e Aracati ficaram ainda mais devastadas pela força das águas devido a maior proximidade com o Oceano Atlântico. Segundo o Jornal O Povo,
[...] Técnicos do DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, verificaram que a vazão sobre a ponte da BR-304 no Rio Jaguaribe, em Aracati, na cheia de 22 de abril passado foi de apenas 4.813 m³/s, enquanto a máxima registrada no dia 6 de maio foi de 10.300 m³/s. (O povo, 14 jun. 1985)
Segundo o Cássio Borges, “esta vazão de 10.300 m³/s., medida no rio Jaguaribe, em Aracati, na cheia Excepcional de 1985 é uma das maiores obtidas com molinete fluviométrico em nosso país, podendo ser considerada como a maior medida em rios do Nordeste.” (BORGES, 1999, p. 40).
Em Jaguaruana, poucos foram os locais que não foram atingidos pela água. Na zona rural, sede de distritos como o de Giqui e as comunidades serranas, como o Lageiro do Mel e o Açude do Coelho, não ficaram submersas pelas águas. O problema para estas comunidades foi o isolamento, já que durante os 90 dias de chuva, as estradas ficaram intransitáveis.
Na sede do município, como antes foi dito, somente o Bairro de Cardeais, periferia da cidade, onde posteriormente foram construídas novas casas e abrigos para as pessoas que haviam perdido tudo – as Vilas do Manezinho, Zé Augusto e a Vila do Padre, além de algumas edificações do centro urbano, não foram atingidas pela água.
[...]
1.3. Terra molhada, secas de Sofrimento
Sabe-se que em tempo de cheia a população, principalmente a mais carente, enfrenta vários tipos de dificuldades. Em 1985 não foi diferente. Os relatos das vítimas nos dão condições de melhor entendermos como se deu este processo da inundação.
Os momentos mais difíceis vivenciados pelos moradores são aqueles onde eles se defrontam com as perdas: suas roças, casas, animais e pertences, quase tudo foi levado pela força das águas, com exceção daquilo que se pode salvar.
Como era muito grande o movimento, as canoas não dava pra atender a todo mundo, o povo saía daqui nos braços, o pessoal levando todas as mobílias nos braços. Pote, era a mobília de pessoas carentes. Na cabeça mesmo. Uma malinha, uma cama, um fogão. Antonio Avani Almeida, entrevista citada).
[...]
Durante as entrevistas, colhemos
depoimentos que falavam da situação de fome em 1974, ao passo que em 1985 os
nossos entrevistados chegam a dizer que sobrou mercadoria. Quando indagado
sobre a postura dos governantes no combate às consequências da enchente, o Sr.
Francisco Firmino Neto assim respondeu: “eles ajudaram no que puderam. Davam
transporte, em passagem d’água, bolsa de mercadorias, medicamentos, e quando
não se resolvia aqui, toca pra Russas, pra tentar ver se resolvia o problema .”
(Francisco Firmino Neto, 09 nov.2002)
[...]
Dentre os vários
problemas enfrentados pelas vítimas das enchentes, um deles é fato recorrente
nas falas do povo: as doenças. O período compreendido entre abril e maio de
1985 foi crítico no que tange ao aspecto da saúde devido a muitas situações.
Sobre esse aspecto da enchente,
ouvimos Sebastião Pereira da Cunha, 54 anos, no dia 18 de Novembro de 2002, na
cidade de Jaguaruana. Bastião da Farmácia, como é conhecido, trabalha ainda
hoje numa das mais antigas drogarias da cidade e já o fazia no período da cheia
de 1985. Sua narrativa foi de importante para que pudéssemos entender os
aspectos relacionados às doenças durante este período.
Segundo seu relato, em
abril de 1985, o Hospital e Maternidade Nossa Senhora da Expectação de
Jaguaruana deixou de atender aos pacientes como antes fazia por causa do grande
número de pacientes e devido às condições físicas do hospital durante a cheia.
“O
que se podia, se fazia por aqui. Quando não dava certo vinha um helicóptero e
levava o povo para Russas. Eu mesmo vi baixar várias vezes e levar doentes e
mulheres grávidas de Helicóptero. Aqui não tinha o que fazer. Aqui não dava. Às
vezes era muito complicado e o povo ate morria.” (Sebastião Pereira da Cunha,
18 nov. 2002)
Além das doenças
convencionais dos períodos chuvosos como a gripe, conjuntivite, micoses,
principalmente nos pés e pneumonias, as águas abundantes traziam ainda um outro
problema que era a convivência com animais como cobras e ratos, o que implicava
perigo maior à saúde do ser humano.
O
pessoal da saúde já prevenia logo: aquele que não tivesse costume de andar de
pés descalço nas águas se protegesse bem, usassem botas ou mesmo a gente
carregava nos braços. Aquele povo de Fortaleza quando vinha pra cá, Dr. Luiz, o
Dr. Lopes, a gente levava nos braços. O próprio Gonzaga Mota, quando veio pra
cá na última vez, desceu nos braços do povo por causa da água. (Raimundo de
Sales Façanha, 18 no v.
2002).5
Assim,
surgia outro problema: o cemitério municipal de Jaguaruana fica no centro da
cidade, em frente ao hospital, na avenida Simão de Góis. Toda esta região ficou
inundada. Os mortos então tiveram que ser enterrados nos cemitérios dos
distritos. Os mais escolhidos eram os de Borges e Gigui por serem localidades
mais altas, ignorando-se as distâncias, que são de 18 e 22 km respectivamente.
Bastião da farmácia dá conta dos mortos em suas memórias: “As pessoas adquiriam
muitas doenças. Crianças principalmente, mas idosos também. Morreu tanto
pessoas idosas como crianças por causa das epidemias de gripe, febre, essas
coisas.” (Sebastião Pereira da Cunha, entrevista citada)
Os depoentes sempre falaram da
festa que era ver uma destas aeronaves aterrissando no meio da rua. Relembra
Avani que “as pessoas viam os helicópteros pousar no centro da cidade, quase
dentro d’água, em qualquer local. Ali na ponte onde hoje é o posto do Jesus, de
meia em meia hora baixava um helicóptero”. (Antonio Avani Almeida, entrevista
citada).
Foi um período de muito movimento. Tinha semana que era quase
direto, quase todo dia vinha muito helicóptero. Isso fazia um certo tumulto na
cidade porque não era normal pousar helicóptero numa cidade pequena. A situação
em si já chamava a atenção das pessoas, que vinham ver pela pela curiosidade.
Eles também levavam as pessoas, como mulheres grávidas pra ganhar neném. Vinham
buscar aqui porque não podiam sair de carro. Realmente, tinha um certo
movimento. (Sebastião Pereira da Cunha, entrevista citada).
“No geral, enquanto havia terreno enxuto, começou a sair para os cardeais, onde hoje é chamada vila do manezinho, neste tempo ainda não era. Eracapoeira, cardeais, era bairro do dió. E ai quando encheu mesmo de inverno e de chuva, a estrada ruim. Abriu uns córregos ali depois da ponte, que a gente chama bueiro do seu mundinho bengala. Aí foi logo, acabou logo. Foi preciso canoa, câmara de ar de trator com umas tábuas para as famílias passarem. Quando não teve mais jeito, o prefeito era seu Manezinho Barbosa, ele decretou calamidade pública. Parou todas as escolas, o pessoal foi entrando dentro das escolas,e aí foi uma calamidade total, geral. O povo ficou nas escolas, em cima da pracinha, na igreja. Na igreja ficou cerca de 140 pessoas. O pe. Ducéu mandou retirar o movimento de santos, imagens, liberou tudo pro povo ficar.” (Antonio Avani de Almeida, entrevista citada).
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4 SANTOS. João Luís dos. Terra e Política: A política local analisada sob a ótica camponesa. Monografia de Graduação em Historia apresentada a UECE – FAFIDAM. Limoeiro do Norte, 2000.
5 Mons. Raimundo de Sales Façanha, 67 anos. Entrevista realizada em 19 de Novembro de 2002, na cidade de Jaguaruana. O Pe. Ducéu foi importante no contexto da cheia devido ao trabalho pastoral realizado pela igreja católica do município. Um de suas ações foi a abertura das portas da igreja matriz para que lá ficassem abrigados 22 famílias. Padre Ducéu também foi importante personagem durante a enchente de 1974, tendo sido seu nome colocado em vila de casas construída no Bairro Cardeais, após o fim da enchente. Sobre o assunto ver SILVA. Kamillo Karol Ribeiro e. Nos caminhos das memórias, nas águas do Jaguaribe. Narrativas sobre as enchentes em Jaguaruana-CE (1960, 1974, 1985). 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Humanidades 2, Universidade Federal do Ceará, 2006. Pe. Ducéu faleceu em maio de 2009.
Kamillo Karol Ribeiro e Silva é pesquisador da área de História, autor
das pesquisas sobre o fenômeno da cheia em Jaguaruana “ENTRE POEIRA E AS ÁGUAS – A cheia de 1985 na cidade de Jaguaruana”,
monografia; “NOS CAMINHOS DA MEMÓRIA,
NAS ÁGUAS DO JAGUARIBE - Memórias das enchentes em Jaguaruana-CE (1960, 1974,
1985)”, dissertação.
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